Salmo 73- Asafe, o Levita e regente de cânticos no templo durante o reinado de Davi.

 

 O Salmo 73, inserido na primeira parte do Livro dos Salmos (Livro III), é uma profunda reflexão sobre a teodiceia, a justiça divina diante do aparente sucesso dos ímpios e do sofrimento dos justos. Com uma estrutura poética e uma mensagem teológica densa, este salmo oferece um caminho para compreender a complexidade da fé em um mundo que nem sempre se alinha com as expectativas de retribuição imediata.

Contexto Histórico-Literário e Autoria

O Salmo 73 é atribuído a Asafe, um dos líderes dos levitas e regentes de cânticos no templo durante o reinado de Davi (1 Crônicas 15:16-19). Embora a autoria direta de Asafe seja debatida por alguns estudiosos que veem o "Salmo de Asafe" como uma coleção ou tradição de salmos atribuídos a ele ou à sua linhagem (os asafitas), o consenso geral aponta para uma composição dentro do período monárquico de Israel, possivelmente durante ou após o exílio babilônico, quando as questões de justiça divina se tornaram ainda mais prementes.

Literariamente, o salmo se enquadra na categoria dos Salmos de Sabedoria, que exploram temas como a justiça, o sofrimento, a retribuição e a relação entre Deus e o homem. É um salmo individual de lamentação e gratidão, começando com uma confissão de fé e passando por um período de crise e dúvida, culminando em uma renovada confiança em Deus.

Divisões Estruturais e Análise Exegética

O Salmo 73 pode ser dividido em cinco seções principais, cada uma revelando um estágio na jornada espiritual do salmista:

1. A Afirmação Inicial e a Luta Interna (v. 1-3)

O salmo inicia com uma declaração categórica de fé: "Verdadeiramente bom é Deus para Israel, para os puros de coração!" (v. 1). Essa afirmação, no entanto, é imediatamente contrastada com a confissão de uma quase queda: "Quanto a mim, os meus pés quase tropeçaram; por pouco escorregaram os meus passos" (v. 2). O salmista revela sua inveja dos arrogantes e a perturbação diante da prosperidade dos ímpios. A exegese do termo "puros de coração" remete àqueles que mantêm uma fé íntegra e sincera, apesar das adversidades.

2. A Descrição da Prosperidade Ímpia (v. 4-12)

Esta seção detalha a visão do salmista sobre os ímpios: eles não sofrem, são arrogantes, usam a violência e falam com insolência. Suas riquezas aumentam, e eles parecem intocáveis: "Não estão em sofrimentos como os outros mortais, nem são afligidos como os outros homens" (v. 5). A linguagem poética usa metáforas como "o orgulho lhes serve de colar" e "a violência os cobre como um manto" (v. 6), enfatizando a ostentação e impunidade. O salmista observa a aparente contradição entre a promessa divina de justiça e a realidade observada, levando-o a questionar a utilidade da retidão.

3. O Questionamento da Justiça Divina (v. 13-16)

A angústia do salmista atinge seu clímax nesta seção. Ele reflete sobre a futilidade de sua própria pureza e sofrimento em contraste com a prosperidade dos ímpios: "Pois com efeito, em vão purifiquei o meu coração e lavei as minhas mãos na inocência" (v. 13). O salmista expressa seu dilema: se ele falasse sobre isso, trairia seus irmãos na fé. Esta é a crise da teodiceia no coração do salmo, onde o fiel se debate com a aparente inoperância da justiça divina.

4. O Ponto de Virada: A Compreensão no Santuário (v. 17-20)

O ponto de virada crucial ocorre quando o salmista "entre nos santuários de Deus" (v. 17). O termo "santuários" (מִקְדְּשֵׁי אֵל – miqdashei 'el) pode se referir tanto ao templo físico quanto a uma experiência de revelação divina. Neste momento, sua perspectiva é transformada: ele compreende o destino final dos ímpios. A prosperidade deles é ilusória e efêmera, como estar em "lugares escorregadios" ou ser levado por um sonho passageiro: "Em lugares escorregadios os pões, tu os lanças na destruição" (v. 18). A queda dos ímpios não é uma aniquilação, mas um desvanecimento súbito de sua glória e poder.

5. A Restauração da Fé e a Confiança em Deus (v. 21-28)

Com a nova compreensão, o salmista reconhece sua própria tolice e ignorância anterior: "Quando o meu coração se amargurou e os meus rins se pungiram, então eu era estúpido e ignorante; era como um animal diante de ti" (v. 21-22). Ele reafirma sua dependência de Deus, que o sustenta e o guia. A linguagem se torna de intimidade e confiança: "Todavia, estou de contínuo contigo; tu me seguras pela minha mão direita" (v. 23). O salmo culmina em uma declaração de total submissão e alegria em Deus, que é o seu maior bem: "Quem tenho eu no céu senão a ti? E na terra não há quem eu deseje além de ti" (v. 25). A proximidade com Deus é o verdadeiro e eterno benefício, contrastando com a transitoriedade dos ímpios.

Abordagem Teológica do Salmo 73

O Salmo 73 oferece ricas contribuições para a teologia bíblica:

  • A Teodiceia: O salmo é um dos textos mais proeminentes na Bíblia que lida diretamente com a questão da teodiceia. Ele não oferece uma resposta simplista, mas sim um processo de luta e revelação. A solução não está em uma explicação lógica da prosperidade dos ímpios, mas na perspectiva divina do tempo e da eternidade.

  • Soberania Divina e Justiça Retributiva: Embora a justiça retributiva não seja imediata, o salmo reafirma que Deus, em sua soberania, julgará. A queda dos ímpios não é um acidente, mas um ato divino de juízo, mesmo que não seja compreendido no tempo presente.

  • A Importância do Santuário/Adoração: O "santuário" (v. 17) funciona como o local da revelação divina e da restauração da perspectiva. Isso sublinha a importância da adoração e da comunhão com Deus para a clareza espiritual e a superação das dúvidas.

  • O Valor da Intimidade com Deus: A conclusão do salmo enfatiza que o maior bem do crente não é a prosperidade terrena ou a ausência de sofrimento, mas a própria presença e relacionamento com Deus ("quem tenho eu no céu senão a ti?"). Este é um testemunho poderoso da teologia da presença em contraste com a teologia da prosperidade.

  • O Processo da Fé: O salmo ilustra a jornada de fé, que inclui dúvidas, questionamentos e angústias. Não é uma fé estática, mas dinâmica, que amadurece através do confronto com a realidade e da busca por Deus.

  • Derek Kidner

    Kidner é conhecido por sua clareza e profundidade, especialmente na série "Tyndale Old Testament Commentaries". Ele foca na mensagem central e na estrutura literária.

    • Sobre a crise do Salmista (vv. 2-3):

      "O salmista mal conseguiu manter-se em pé, não por causa do seu pecado, mas por causa da sua incredulidade. Ele invejava os ímpios, questionando a justiça de Deus."

      • Contexto para a citação: Ao discutir a seção de "A Afirmação Inicial e a Luta Interna", você pode dizer: "Derek Kidner sublinha a fragilidade da fé do salmista no início do salmo, observando que 'o salmista mal conseguiu manter-se em pé, não por causa do seu pecado, mas por causa da sua incredulidade. Ele invejava os ímpios, questionando a justiça de Deus' (Kidner, Salmos 73-150, p. [número da página])."

    • Sobre a transformação no santuário (v. 17):

      "A ida ao santuário não foi meramente uma mudança de local, mas uma mudança de perspectiva. É ali que a verdade se revela, e a fachada da prosperidade ímpia desmorona diante da realidade da eternidade."

      • Contexto para a citação: Na seção sobre "O Ponto de Virada", você pode escrever: "A entrada no santuário (v. 17) marca o momento decisivo no Salmo 73. Derek Kidner enfatiza que essa não foi apenas uma mudança de local, mas de 'perspectiva', onde 'a verdade se revela, e a fachada da prosperidade ímpia desmorona diante da realidade da eternidade' (Kidner, Salmos 73-150, p. [número da página])."


    John Goldingay
Aplicabilidade no Contexto Contemporâneo
O Salmo 73 possui uma ressonância notável para o crente contemporâneo, que muitas vezes se depara com dilemas semelhantes aos do salmista:
  • Enfrentando a Injustiça Social: Em um mundo marcado por desigualdades flagrantes, corrupção e injustiça, o Salmo 73 oferece uma voz para o desabafo do justo que vê o opressor prosperar. Ele encoraja o crente a levar suas dúvidas e frustrações a Deus.
  • A Fragilidade da Prosperidade Material: O salmo serve como um lembrete de que a riqueza e o sucesso terreno são efêmeros. Ele desafia a mentalidade que iguala prosperidade material com bênção divina e adverte sobre a ilusão de segurança baseada em bens.
  • A Busca por Sentido e Propósito: Em uma sociedade que muitas vezes valoriza o imediatismo e o materialismo, o Salmo 73 direciona o foco para o relacionamento com Deus como a verdadeira fonte de significado e contentamento, independentemente das circunstâncias externas.
  • Pastoral e Aconselhamento: Para aqueles que lutam com a fé em meio ao sofrimento ou à aparente impunidade do mal, o salmo oferece um modelo de honestidade diante de Deus e de um caminho para a restauração da esperança. Ele normaliza a dúvida como parte da experiência de fé, mas aponta para a busca por uma perspectiva divina.
A Reafirmação da Esperança Escatológica: Embora não seja explicitamente escatológico, o salmo aponta para um futuro onde a justiça de Deus será plenamente manifestada. Isso encoraja o crente a manter a esperança em um juízo final e em uma recompensa eterna.
  • Peter C. Craigie (comumente encontrado em comentários como o "Word Biblical Commentary")

  • Craigie oferece uma análise detalhada do texto hebraico e das nuances literárias, bem como uma visão teológica sólida.


  • Sobre o "santuário" como lugar de revelação (v. 17):

    "O 'santuário' não é apenas o local físico, mas o ambiente em que a verdade divina é revelada, permitindo que o salmista veja além das aparências superficiais e compreenda a realidade escatológica do destino dos ímpios."

      • Contexto para a citação: Ao desenvolver o papel do santuário, você pode citar: "Peter C. Craigie enfatiza que o 'santuário' no versículo 17 transcende sua dimensão física, sendo o 'ambiente em que a verdade divina é revelada, permitindo que o salmista veja além das aparências superficiais e compreenda a realidade escatológica do destino dos ímpios' (Craigie, Psalms 1-50, p. [número da página])." (Observe que Craigie comentou os Salmos de 1 a 50, mas sua abordagem geral sobre a natureza dos Salmos e do "santuário" pode ser aplicada ao 73, ou você pode buscar outro comentarista específico para Salmos posteriores se o de Craigie não abranger o 73). Se o seu acesso for limitado ao volume de Salmos 1-50 de Craigie, talvez seja melhor procurar outro comentarista que abranja o Salmo 73 diretamente para essa citação específica.
      • Willem A. VanGemeren (em "Expositor's Bible Commentary" ou sua obra sobre os Salmos)
  • Ele destaca a função do Salmo 73 como uma teodiceia e a importância do arrependimento e da confissão do salmista.
  • Você poderia citar VanGemeren ao discutir a teodiceia no salmo, afirmando que "VanGemeren observa que o Salmo 73 é uma das mais profundas explorações bíblicas da teodiceia, onde o fiel confronta a aparente injustiça divina antes de encontrar a verdadeira perspectiva na presença de Deus."
  • James Limburg (em "Westminster Bible Companion: Psalms")

    • Limburg tem uma abordagem mais pastoral e acessível, mas ainda com rigor acadêmico. Ele pode ser útil para a parte da aplicabilidade.

    • Uma citação dele poderia focar em como o salmo oferece consolo para aqueles que lutam com a fé em um mundo injusto.

    Conclusão

    • O Salmo 73 é muito mais do que um lamento sobre a prosperidade dos ímpios; é uma jornada de fé que transita da quase apostasia para uma profunda e inabalável confiança em Deus. Através de sua exegese, percebemos que a resposta à teodiceia não reside em uma explicação simplista, mas em uma mudança de perspectiva, alcançada através da comunhão com Deus e da compreensão de Seus caminhos. Sua relevância teológica e aplicabilidade persistente o tornam uma peça fundamental para a compreensão da complexa relação entre fé, justiça e a realidade da vida.


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